segunda-feira, dezembro 08, 2008

Quem tem medo de Evelyn Wakim?

por Martina Memory, de Beirute

Em 2008 o carnaval caiu muito cedo, no iniciozinho de fevereiro. Por causa disso o trabalho na minha empresa ficou acelerado além da conta em janeiro, que é o mês em que sempre tirei minhas férias. Sou divorciada, sem filhos, e costumo aproveitar as férias pra viajar. Para mim é uma terapia, a melhor que tem. Como meu chefe pediu que eu ficasse na empresa em janeiro, acabei transferindo minhas férias para março, já que fevereiro estava muito em cima, e programei uma ida à Itália. Quatro dias em Milão, quatro em Roma, e os outros sete, como já é costume meu, seriam decididos por lá mesmo, meio que no improviso. Talvez Florença, talvez Veneza... Na hora eu veria o que me desse melhor na telha.

Enquanto eu arrumava minha bagagem, percebi que em março de 2008 faria dez anos da época em que é ambientado um dos meus thrillers preferidos, 120 horas, de Luis Eduardo Matta, que se passa quase todo em março de 1998. Como o livro tem cenas em Roma, não pensei duas vezes e coloquei-o na minha bolsa. Durante o vôo Brasil-Itália, o reli todinho. 120 horas é um romance maravilhoso, com personagens antológicos. Além da trama de mistério e suspense com um tempero dramático, os personagens me marcaram demais. Quando cheguei a Roma, depois de passar por Milão, saí com o livro embaixo do braço percorrendo todos os lugares citados na história: a Via Veneto, a Via del Corso, a Via Condotti, a Piazza Esedra, o bairro com vista para o Coliseu onde Aurélio Amorim tinha alugado um apartamento... Fiquei emocionada e foi aí que eu tive uma idéia meio doida. Meio, não: totalmente doida. Já que eu tinha sete dias restantes, porque não viajar para o Oriente Médio, onde a ação principal do livro se concentra?

O Líbano ficava mais ou menos perto. Poucas horas de avião, calculei. No meu hotel me recomendaram uma boa agência de turismo próxima. Fui até lá e acertei tudo em menos de uma hora: um vôo de ida e volta para o Líbano e reserva num hotel quatro estrelas. Na volta, eu faria uma conexão na Itália pra tomar o avião que me traria para o Brasil. Excitadíssima, corri para o hotel para arrumar minha mala. Na tarde do dia seguinte eu aterrissava em Beirute, capital do Líbano.

Esqueçam as bombas, esqueçam os homens barbudos com turbante e metralhadoras, esqueçam todas as notícias de guerra que chegam até a gente pelos jornais. Beirute é uma metrópole linda, moderna, chiquérrima, cheia de hotéis charmosos, lojas finas de grifes européias de renome, cafés em estilo francês e uma vida noturna agitadíssima que me lembrou Madrid. As pessoas são bonitas e se vestem com elegância, ainda mais com o gostoso friozinho europeu que estava fazendo. O trânsito denso, por outro lado, é bem paulistano. Beirute pode se parecer com muita coisa, mas não com uma cidade do mundo árabe. Sempre com o 120 horas na mão, eu passei quatro dias zanzando pelas ruas, procurando ao vivo os lugares onde se desenrolavam as ações no livro, que além de thriller se revelou um guia pra lá de competente. Caminhei pelo passeio à beira do Mediterrâneo chamado de Corniche, onde ficava o apartamento da estilista Randa Nohra (o prédio estava lá). Na Rua Verdun localizei o lugar onde ficava a butique de Randa e imaginei que ela tivesse sido colocada abaixo para dar lugar a um supermoderno edifício comercial (ele parecia recente, o que confirmava que ainda não existia em 1998). Na Rua Sursock reconheci um casarão que correspondia às descrições da residência de Gabriel Karam. Na Rua Hamra vi o edifício de fachada de vidro onde funcionava o escritório do primo Émile, que foi incendiado na noite do desfile da grife de Randa Nohra. Tudo parecia tão real... Se os cenários existiam, será que a toda a ação do livro também tinha acontecido de verdade?

Eu fiquei me perguntando isso, quando criei coragem pra chegar ao ponto máximo da visita: o edifício que abrigava a sede da AMI Lloyd, a mega-empresa de navegação da poderosa e impiedosa Evelyn Wakim Pietrangeli.

O prédio, ainda segundo o livro, ficava perto de onde eu estava. Andei poucas quadras. Logo o reconheci. Seu nome era (é) Liberty Tower e é um arranha-céu listrado de branco e preto com não sei quantos andares. Na entrada, um chafariz. Entrei no saguão da recepção e, casualmente, informei, em inglês, que precisava ir ao escritório da AMI Lloyd. Coloquei o meu exemplar de 120 horas sobre o balcão. Minha intenção era fazer uma brincadeira para falar do livro, mas o rapaz que me atendeu respondeu com naturalidade:

— Nono andar. Seus documentos, por favor?

Me lembrei que no livro, o escritório ficava no nono andar. Será que o rapaz estava falando sério ou estava tirando uma com a minha cara de gringa? Quando eu olhei para o painel, perto dos elevadores, vi que ele falava sério: lá estava, ocupando a coluna do nono andar, o nome da AMI Lloyd.

Passei meu passaporte a ele e ele perguntou, segurando o telefone:

— A quem devo anunciá-la, senhora?

Engoli em seco, mas fui em frente:

— À Dona Evelyn Wakim.

O recepcionista espiou o relógio.

— São mais de cinco da tarde. A essa hora Dona Evelyn já deve estar saindo. Mas vou tentar assim mesmo.

Meu Deus do céu, o que estava acontecendo? Então Evelyn Wakim, minha “ídola” na ficção, existia? Se ela fosse como no livro, não ia gostar da minha visita. Mas antes que eu pudesse pensar em dar no pé, a porta de um dos elevadores se abriu e uma mulher elegante saiu de dentro dele. Ela tinha a pele branca, o cabelo muito escuro e bem arrumado e vestia um terninho com um mantô por cima dos ombros. Carregava uma bolsa e uma pasta. Estava de óculos escuros. Olhei para ela e concluí que não podia ser Evelyn Wakim. Aquela era uma mulher mais idosa, que devia ter bem mais de 70 anos, quase 80. E, em 120 horas, Evelyn tinha uns 67 ou 68. Se bem que o livro se passava em 1998. Dez anos atrás. Ou seja, se viva, Evelyn Wakim teria, em 2008, 77 ou 78 anos.

A senhora foi se afastando devagar em direção à saída. Sua postura ereta e altiva era a de uma pessoa que se achava muito superior e muito importante.

O recepcionista falou, apontando para ela:

— Aquela é Evelyn Wakim. Eu disse que ela já devia estar de saída.

Não sei o que aconteceu, mas Evelyn parou de repente. Ela deve ter ouvido o recepcionista falar seu nome — e, com certeza, não ficou muito contente. Ela virou-se para nós e retirou seus óculos de sol, revelando os olhos negros, enormes, firmes e aterradores que Luiz Eduardo Matta descreveu tão bem no livro. Por alguns minutos, ficou nos olhando com aquela cara meio furiosa, meio indignada de “quem essa gente pensa que é para ousar pronunciar o meu nome?”. Com o rosto contraído, Evelyn me olhou de cima abaixo e, pela cara de repulsa que fez, pareceu não ter gostado nem um pouquinho do que viu. Ela recolocou os óculos de sol e saiu pra rua, onde um Mercedes preto já a aguardava com a porta de trás aberta por um chofer uniformizado.

O recepcionista, parecendo apavorado, correu até mim e falou, tropeçando nas palavras:

— Minha senhora, a senhora tem que sair do Líbano depressa. Ouviu bem? Depressa!!!!

— Por quê?

— Dona Evelyn é uma mulher poderosa e não gostou da sua presença aqui. Eu percebi pela maneira como ela olhou para a senhora. Corra para o aeroporto, antes que ela coloque toda a polícia de Beirute para investigar quem é a senhora e o que veio fazer no Líbano.

— Ela é tão poderosa assim?

— Muito mais do que a senhora pensa. Não perca tempo. Fuja. Eu prometo que vou manter sigilo sobre a sua identidade — ele me devolveu o passaporte e eu o guardei na bolsa.

Fiz o que ele me disse. Arrumei minha mala voando, encerrei minha estadia no hotel e, antes das oito da noite eu já estava no aeroporto. Consegui lugar num vôo que sairia pra Milão dali a três horas. O tempo de espera na sala de embarque do aeroporto foi angustiante. Eu achava que, a qualquer momento, policiais apareceriam para me levar à presença da poderosa Dona Evelyn. Mas nada aconteceu, felizmente. Na hora marcada, entrei no avião e, quando ele levantou vôo, respirei aliviada.

Foi só aí que eu me lembrei que, na pressa de fugir, tinha esquecido meu exemplar de 120 horas na portaria do Liberty Tower. Será que alguém ali teria curiosidade, algum dia, de abri-lo? E se Evelyn Wakim descobrisse que toda a história sórdida em que se envolveu há dez anos atrás estava detalhada naquele thriller brasileiro? Como ela reagiria? Será que, sem querer, coloquei o autor do livro em perigo?

Enquanto o avião rumava de volta à Itália, fiquei me perguntando quem poderia ter medo de Evelyn Wakim. Concluí que eu tenho. Mas ela continua sendo minha “ídola” assim mesmo.

Nota de Flavia Andrade: Nossa colega "Martina Memory" se inspirou no livro 120 HORAS
, de Luis Eduardo Matta, para narrar este encontro com Evelyn Wakim.