segunda-feira, novembro 24, 2008

A tarde em que Don Corleone foi comprar frutas

por Paty Faria, de Nova York

Meu sogro faleceu há dois anos. Foi uma época triste. Apesar da idade (80 anos e uns quebradinhos), ele era um homem cheio de vitalidade, alegre, inteligente e com muita coisa ainda para ensinar aos mais jovens. Sua vida, movimentada, rica, cheia de altos e baixos, dava um livro. E pode ser que tenha dado mesmo. Não um livro completo, mas pelo menos a passagem de um.

Foi o que eu e meu marido descobrimos lendo um diário que ele manteve durante certo período da vida e que encontramos no seu apartamento, enquanto embalávamos roupas e outros pertences que pretendíamos doar para instituições de caridade. O diário continha anotações da época em que ele resolveu se mudar dos Estados Unidos para o Brasil. E por causa da violência, vejam só. Ele dizia que a Nova York dos anos 40 era uma cidade dominada por gângsteres e que no Brasil a vida era muito mais calma. Ele viveu o bastante para ver a situação se inverter.

Já deu para perceber que meu sogro era americano. Filho de italianos que tinham emigrado para os Estados Unidos. Ele nasceu em Nova York e logo depois o pai dele morreu. Ele e a mãe passaram, então, a viver com dificuldade. Quando meu sogro fez doze anos foi forçado a começar a trabalhar. Primeiro, numa carpintaria, cujo dono perdeu os dois filhos num acidente e, deprimido, se matou, ocasionando o fechamento do negócio. Depois, trabalhou em duas cantinas, mas não se adaptou ao trabalho. Em meados dos anos 40, ainda jovem, ele montou uma barraca para vender frutas numa esquina de Little Italy, na região sul de Manhattan, um reduto de italianos. Era um negócio lucrativo que dava a ele o suficiente para viver com a mãe, que trabalhava numa fábrica. Mas ele não gostava de ficar o dia inteiro na rua, principalmente no inverno. E ainda tinha que aturar ladrões, mafiosos e malandros que circulavam pelas redondezas.

O episódio que, segundo estava anotado no diário, foi o estopim para eles decidirem sair dos Estados Unidos aconteceu num fim de tarde de inverno de 1945. Meu sogro estava com a barraca de frutas armada quando um distinto senhor, que tinha se tornado seu freguês, saiu do prédio onde funcionava a sede da companhia de azeites Genco Pura. A porta traseira de um Buick estava aberta à espera dele, mas o homem, em vez de entrar logo no carro, resolveu comprar umas frutas antes. Era um homem rico, mas de gestos simples, e parecia generoso. Estava bem vestido, com paletó e sobretudo. Ele escolheu as frutas e meu sogro as colocou num saco de papel. O homem pagou e, quando se virou para voltar para o carro, dois homens de sobretudo e chapéus pretos apareceram na esquina. Os chapéus estavam puxados para baixo, escondendo os rostos.

O homem deixou cair o saco com as frutas na calçada e saiu correndo em direção ao Buick, enquanto gritava:

Fredo! Fredo!

E aí vieram os tiros. Primeiro um. Depois mais dois, seguidos por outros dois. Meu sogro se escondeu atrás da barraca para se proteger. Outras pessoas que passavam pelo local também haviam se encolhido nos cantos ou se lançado ao chão, assustadas. As frutas que tinham acabado de ser vendidas rolaram pela calçada. Quando cessaram os disparos, meu sogro se levantou para ver o que tinha acontecido e viu o velho caído, ensangüentado. O rapaz a quem ele chamou, o “Fredo”, veio em seu socorro, enquanto os pistoleiros desapareciam pela esquina. Uma multidão se formou em torno do homem. Logo chegaram a polícia, uma ambulância e a imprensa. Foi, então, que meu sogro descobriu que o seu cliente na barraca se chamava Vito Corleone, que o “Fredo” era o apelido de um dos seus filhos (ele se chamava Frederico) e que o crime era um acerto de contas entre mafiosos.

Meu sogro ainda ficou tempo suficiente em Nova York para saber que Don Vito Corleone sobrevivera, mas que outro de seus filhos, Santino, ou “Sonny” Corleone, morrera, também por obra da Máfia. Foi a gota d’água. Não dava mais para morar num país perigoso como os Estados Unidos. Com um primo vivendo em São Paulo, meu sogro se animou a tentar a sorte nas terras tupiniquins. Meses mais tarde, ele e a mãe, tomaram um “Ita” no Norte (e põe Norte nisso) e vieram para o Brasil, fugindo do inverno rigoroso e da violência. Aqui, ele aprendeu o português e foi trabalhar num armazém. Em dois anos era sócio do estabelecimento e em dez anos, tinha virado dono de uma meia dúzia deles. Nos anos 70, passando por uma livraria, viu um exemplar (em inglês) do livro The Godfather. Comprou-o e levou um susto ao ler no segundo capítulo uma cena idêntica à que presenciara em Nova York.

Durante mais de 30 anos meu sogro se perguntou se Mario Puzo era um dos transeuntes que passavam por Little Italy na hora dos tiros. Morreu sem saber a resposta.

Nota de Flavia Andrade: Nossa colega "Paty Faria" se baseou numa cena do livro
O PODEROSO CHEFÃO, de Mario Puzo, para narrar essa versão do atentado a Don Vito Corleone.