segunda-feira, dezembro 15, 2008

Quando Alec Leamas ainda não tinha ido para o frio

por Eça de Assis, de Berlim

Meu pai era engenheiro e trabalhava para uma empreiteira americana que tinha escritório no Brasil. Nos anos 50 ele foi mandado para a Alemanha Ocidental para um treinamento, já que o país vivia uma espécie de boom imobiliário depois da Segunda Guerra. Moramos (eu, ele, minha mãe e minha irmã) primeiro em Munique e em 1961 nos mudamos para Berlim Ocidental, já com o muro erguido e todo aquele clima sombrio da Guerra Fria.

Berlim Ocidental era um vibrante enclave capitalista no meio das trevas da Alemanha comunista. Muita gente pensa que a cidade ficava situada na fronteira entre as duas Alemanhas, mas não era verdade. Berlim ficava literalmente “dentro” da Alemanha Oriental e isso fazia da cidade um lugar ainda mais tenso. Já nessa época eu adorava romances de espionagem, como os de Graham Greene e de Ian Fleming. Era um filão que estava começando a conquistar leitores pelo mundo. E em Berlim a gente respirava espionagem.

Eu devia ter uns 15 pra 16 anos quando fui à festa de aniversário de uma colega de escola, na casa dela, perto da Potsdamer Straβe. Meus pais eram muito liberais e não se incomodavam que eu chegasse tarde em casa, contanto que eu não os acordasse. Talvez por eu ser filho homem (minha irmã nunca desfrutou das mesmas regalias). Por volta da meia-noite, eu e dois dos meus amigos mais próximos, Hans e Peter, resolvemos sair para dar uma volta pela cidade. Tínhamos bebido muita cerveja e estávamos meio altos. Fomos caminhando sem rumo pela Potsdamer Straβe sem ter muita idéia de para onde estávamos indo. Passamos sobre o Landwehr Kanal e continuamos andando, sentindo que a paisagem ia ficando cada vez mais vazia, árida, sinistra mesmo, com ruínas de construções destroçadas na Segunda Guerra Mundial. Não tinha quase ninguém na rua. Além de nós, o que víamos eram veículos militares, soldados, policiais... Estávamos altos, mas não totalmente bêbados para perceber que nos aproximávamos do muro. O que só atiçou ainda mais os nossos ânimos.

Eu nunca tinha visitado a área do muro, mesmo morando em Berlim há uns meses. Aliás, para ser bem franco, eu nem sabia direito o que representava aquele muro, embora já tivesse 15 anos. Mas eu sabia que o “lado de lá” era inimigo. Diminuímos o passo por uma rua mais estreita e avistamos, lá no final, luzes brancas de holofotes iluminando um paredão que só podia ser o dito cujo. Vimos sacos de areia empilhados, jipes, blindados e alguns carros civis parados e eles eram cada vez mais numerosos à medida que nos aproximávamos. Andamos um pouco mais e vimos uma placa que dizia “YOU ARE LEAVING THE AMERICAN SECTOR”. A frase era repetida abaixo em russo, francês e alemão. Concluímos que não estávamos apenas perto do muro, mas num dos pontos de comunicação entre as duas metades da cidade dividida. O lugar que ficou conhecido como Checkpoint Charlie.

Percebemos que alguns soldados nos olhavam com cara de poucos amigos. Foi quando um Opel freou atrás de nós, quase nos atropelando, enquanto atravessávamos a rua já tomando o caminho de volta. Retornamos à calçada, enquanto o carro estacionava e um homem de meia-idade, vestindo uma capa comprida e com um chapéu na cabeça, saltou desembestado. Ele veio na nossa direção, gritando em alemão:

— O que vocês pensam que estão fazendo?! Quem são vocês?!

Pálidos de susto, não conseguimos falar nada, apenas gaguejamos um princípio de resposta. O homem estreitou os olhos para nos examinar.

— Control? — ele perguntou, apenas.

Olhamos de volta para a placa do posto militar. Se ali era um dos locais de passagem entre Berlim Ocidental e Berlim Oriental, é claro que devia ser também um posto de controle. O homem só podia estar se referindo a isso. Vai ver ele queria ir pra lá e estava meio perdido. Eu tomei a frente e respondi, fazendo um gesto com a cabeça em direção à placa:

— Sim.

O homem relaxou, mas não muito. Ele estendeu a mão para nos cumprimentar:

— Sou Alec Leamas. Vocês foram pontuais.

Eu e meus amigos nos olhamos, sem entender patavina.

— Paul vai atravessar o muro a qualquer momento. O relatório está quase pronto. Estou apenas esperando as informações que ele ficou de nos trazer. Quando vocês chegarem em Londres, amanhã, vão encontrar um assessor de Control no aeroporto. Vocês devem entregar o relatório para ele.

Foi aí que a gente entendeu que Alec Leamas era um espião. E que Control devia ser o codinome do chefe dele.

— Você é inglês? — eu perguntei, falando em inglês.

— Claro. Que pergunta mais idiota... — ele respondeu mal-humorado.

Caminhamos pela Zimmer Straβe até uma cabine. Leamas nos apresentou a um militar fardado, que saiu de dentro dela:

— Esses são os nossos emissários, major. Control tinha mesmo avisado que, desta vez, mandaria pessoas “insuspeitas”. Garotos, esse é o Major Stuart Brown, do exército americano.

O homem sorriu para nós e disse.

— Nosso homem em Berlim Oriental já deve estar se preparando para atravessar o muro. Vamos logo — ele apontou para um prédio a uns duzentos metros do posto de controle. O prédio ficava recuado na calçada, estrategicamente afastado das sentinelas comunistas.

Fomos subindo os andares por uma escada escura. Leamas falou:

— A missão é arriscada. Paul nos traz informações sobre Mundt. É de surpreender que tenha saído vivo.

— Ainda não sabemos se ele saiu vivo, Sr. Leamas. Só saberemos depois que ele passar para o lado de cá. Se ele passar.

Chegamos a uma sala no último andar, de onde se tinha uma vista privilegiada do muro e do lado oriental. A sala funcionava como um posto avançado de operações da CIA e do serviço secreto inglês. O major nos ofereceu café. Leamas apanhou a primeira xícara e depois eu e meus amigos nos servimos. Além de suavizar o frio, o café funcionou para quebrar o efeito de toda a cerveja que a gente tinha bebido. Leamas foi até uma janela. O major lhe entregou um binóculo.

— Um homem numa bicicleta — Leamas disse. — Parou no primeiro controle e foi levado à barraca dos VoPos para verificação de documentos.

— É Paul? — o major perguntou.

­— Sim — Leamas respondeu sem desgrudar do binóculo.

— Vou descer. Vão precisar de mim lá quando ele passar. Eu o trarei aqui.

Leamas afastou-se da janela e perguntou ao major:

— Vocês têm como protegê-lo quando estiver atravessando a fronteira?

— Só se os VoPos atirarem contra o nosso setor. Mas eles não vão fazer isso.

Leamas murmurou alguma coisa mal-humorada em resposta, que não deu para ouvir. O major saiu da sala e ele voltou a se concentrar no binóculo.

Terminamos nosso café e deixamos as xícaras de lado. Tentando parecer íntimo da situação, perguntei:

— Como Paul está se saindo?

— Acabou de ter os documentos verificados. Está, agora, no segundo controle.

— É um bom sinal?

— Não sei. Ele está demorando mais do que o habitual.

Paul passava agora pelo controle aduaneiro. Leamas torcia para que as informações que ele trazia estivessem muito bem escondidas. Ou ocultas nas páginas de um livro ou algo assim. Ele não sabia o método que Paul usaria desta vez.

A bicicleta foi liberada e logo a seguir foi parada por dois soldados comunistas, que fizeram algumas perguntas rápidas. Leamas suava frio. Faltava pouco.

— Acho que conseguimos... — Leamas falou animado. Mas a animação não durou. Empurrando a bicicleta, Paul passou. Estava a poucos passos da linha de demarcação quando ele foi iluminado pelo clarão ofuscante dos holofotes. Uma sirene ressoou, estridente. Um soldado atirou. Paul caiu. Ele ainda estava oficialmente no lado oriental. Leamas se desesperou:

— Valha-me Deus!!!

Leamas largou o binóculo e saiu ventando da sala. Fomos para a janela. Em um minuto ele estava se juntando ao major, na rua. Dali a gente via Berlim Oriental mergulhada na escuridão. Estávamos numa terra de ninguém, cortada por aquela coisa hedionda que era o muro. O informante de Leamas foi trazido para o lado ocidental. Leamas, a princípio, tentou reanimá-lo, mas vendo que não havia mais jeito, tentou localizar as tais informações que ele trazia. Não encontrou nada. Na certa, os homens de Mundt já tinham se apoderado de tudo, sem que o próprio Paul se desse conta.

Leamas estava fora de si e gritava com todo mundo à volta dele. Percebemos que ia sobrar pra gente. Resolvemos cair fora. Descemos correndo as escadas e voltamos ao frio da rua. Uma neblina rala começava a cobrir a madrugada. Despertos graças ao café, tomamos o caminho de volta. Sentimos um alívio à medida que a vibrante Berlim Ocidental foi ganhando forma novamente, com seus letreiros, seu barulho de automóveis e sua modernidade capitalista que contrastava com o panorama desolador do entorno do muro. Quando passamos pelo Landwehr Kanal, eu jurei que tão cedo não daria as caras na zona do muro. E cumpri o juramento. Só agora, depois de tantos anos do retorno ao Brasil, é que voltei a Berlim, a uma Berlim reunificada. Mas ficou na memória essa madrugada em que conhecemos Alec Leamas, antes que o famoso espião entrasse no frio para sair mais tarde nas páginas de John Le Carré.

Nota de Flavia Andrade: Nosso colega "Eça de Assis" se inspirou no começo de O ESPIÃO QUE SAIU DO FRIO,
de John Le Carré, para descrever este encontro com Alec Leamas.