segunda-feira, dezembro 01, 2008

A ressurreição de Madame de l´Oradore

por W@L, de Chartres

Aprendi francês na escola quando era garota. Com a falta de prática, porém, já que ninguém na minha família domina o idioma, resolvi me inscrever num intensivão de seis meses, muito recomendado por pessoas versadas na língua. Mas não adiantou muito. Foi então que minha professora, uma senhora francesa há muitos anos vivendo no Brasil, me recomendou passar uma temporada na França, imersa em aulas e falando francês o tempo todo. Ela me garantiu que, com o francês que eu falava, dois meses bastavam. Juntei algum dinheiro, me inscrevi num dos programas que oferecem cursos no exterior. E lá fui eu. Era junho, fim da primavera, uma época agradabilíssima na Europa. Meu destino: Paris, obviamente.

Minha professora estava certa e, em dois meses eu falava francês tão bem quanto qualquer jornalista da Magazine Littéraire. Exagero meu, claro. Mas meu francês ficou tão bom e eu me apaixonei tanto por aquele país, que decidi esticar a minha estadia por mais um mês. Depois de um agosto sufocante em Paris (o verão francês é brabeira), em setembro resolvi sair da cidade e percorrer aquela parte norte do país. Fui a Dijon, a Orléans, à Bretanha e, enfim, a Chartres, que eu ouvi falar pela primeira vez lendo o livro Labirinto, de Kate Mosse.

Assim que cheguei à cidade, fui direto ao seu monumento principal: a catedral de Notre Dame de Chartres, construída na Idade Média em estilo gótico. Em seu interior, gravado no piso no meio da nave, fica o famoso labirinto que dá nome ao best-seller de Kate Mosse. Havia muita gente ali naquela hora, entre turistas e moradores da cidade. Mas eu percebi que o motivo não era só a visitação à catedral. Havia algo a mais. E só descobri quando, cerca de uma hora depois, eu saí do templo. Na chegada a Chartres, eu estava tão ansiosa para conhecer a catedral que nem tinha percebido a multidão aglomerada na praça localizada em frente à entrada.

O que estaria acontecendo? – pensei eu. Alguma celebridade internacional estava visitando a cidade? O presidente da França tinha vindo rezar na catedral? Algum crime tinha acontecido e todo mundo tinha corrido para ali para ver o que era?

Não, nada disso. Quando me aproximei vi que se tratava somente de um lançamento de livro. Eu, como boa brasileira que sou, me esqueço que em países civilizados como a França, os livros têm lugar de destaque na sociedade. De qualquer maneira, o escritor devia ser famoso. Cheguei mais perto e conferi o cartaz que anunciava o evento: o livro que estava sendo lançado se chamava Le Moyen Âge et moi (A Idade Média e eu). Título curioso. Provavelmente era um romance histórico. Quando apanhei um exemplar numa pilha para folhear, vi que era uma autobiografia. Seu autor era Audric Baillard.

Peraí: “Audric Baillard”. Eu conhecia esse nome. Onde eu tinha ouvido ou lido esse nome?

Olhei para a Catedral e, em seguida, para a mesa onde o escritor estava autografando. Ele era velho. Bem velho. A pele, enrugada, lembrava um pergaminho que tinha sido passado a ferro. Ao lado dele, estava uma mulher alta, elegante, de pernas compridas, cuja idade devia estar situada em algum lugar entre os quarenta e os cinqüenta anos. Ela usava um terninho claro, jóias lindas e o cabelo escuro estava muito bem arrumado, combinando com a pele clara. Percebia-se que era uma mulher rica, importante e de classe. Comprei um exemplar e tomei meu lugar na fila. Uns vinte minutos depois eu estava cara a cara com o escritor.

A mulher ao lado dele percebia que eu a olhava fixamente. Parecendo contariada, ela me perguntou sem cerimônia:

Excusez-moi, madame. Est-ce que nous nous connaissons?

Baillard olhou intrigado para a mulher e depois para mim. Eu não tive reação.

— Você a conhece, Sajhë? — a mulher perguntou ao escritor, ainda em francês.

— Não, madame de l´Oradore — ao completar a resposta, o ele olhou bem firme nos meus olhos. — Deve ser uma turista.

“Sajhë”? “Madame de l´Oradore”? Será que eu estava sonhando?

— A senhora é Marie-Cécile de l´Oradore? — perguntei de repente, sem pensar nas conseqüências daquele ato impensado.

A mulher me encarou com uma fúria tão grande que cheguei a pensar que atiraria em mim se tivesse uma arma.

— Como sabe o meu nome? Quem é você?

O escritor comentou, enquanto sorria amigavelmente para mim.

— Talvez ela tenha lido o livro...

— Que livro? O romance daquela inglesa que esteve aqui? Aquela que mora em Carcassone? Você está falando daquele livro ridículo, cheio de inverdades sobre nós? O livro daquela Kate Mosse?

Baillard apenas concordou com a cabeça. Marie-Cécile me puxou para o canto, me tirando da fila e me perguntou:

— O que ela contou a você sobre nós?

— Ela quem?

— A Kate Mosse. Foi ela que te mandou aqui? Ela vai escrever outro livro e mandou uma espiã para não dar na vista?

— Eu não conheço a escritora — respondi. — Só li o livro e... Bem, sinceramente eu não imaginava que vocês existiam de verdade. Quer dizer que aquela história do Graal...

— É mentira. Uma obra de ficção!

— Mas a senhora chamou Audric Baillard de Sajhë. Exatamente como está no livro da Kate Mosse. E o livro que Baillard está lançando se chama A Idade Média e eu. E é uma autobiografia.

— Não é. “Uma autobiografia” é o subtítulo. O livro é um romance.

— Então, por que a senhora o chama de Sajhë em vez de Audric?

— Eu o chamo como eu quiser.

— Vocês são idênticos aos personagens do livro. Até a pele de Baillard. Ele parece ter mesmo não sei quantos séculos de idade.

— No livro eu morri, não morri? Dentro daquela caverna. E Audric também morreu. O único caso de ressurreição que eu conheço aconteceu em Jerusalém há uns dois mil anos. Se o que está no livro fosse verdade, você acha que eu estaria viva agora, sua idiota?

Marie-Cécile tinha razão. Eu nada disse.

— Vou te dar um conselho: vá embora de Chartres e não conte para ninguém que nos encontrou aqui. É para o seu próprio bem.

Sajhë (ou Baillard) ficou nos olhando, ignorando totalmente a fila que se formara diante dele. Eu estava muito assustada e me afastei, mas não totalmente. Só o suficiente para ficar longe do campo de visão de Marie-Cécile e Baillard. Queria observá-los melhor, observá-los um pouco mais. Aos poucos fui me aproximando sem que eles percebessem e foi quando ouvi Marie-Cécile falar:

— Mais uma intrometida. Por causa desse livro minha vida está virando um calvário. Acho que vou me mudar de Chartres.

— Pelo menos ela não descobriu nada sobre o segredo do Graal — Baillard respondeu. — Afinal, se não fossem eles não estaríamos vivos agora. Nós dois teríamos morrido naquela confusão no Pic de Soularac. Eu, graças ao tiro que você me deu.

— Você não era o meu alvo. E eu sabia que você não morreria por causa de um tiro. Assim como o desabamento só me causou arranhões e uma tipóia no braço esquerdo por dois meses.

— Foi tudo uma boa encenação — Baillard riu. — Mas tome cuidado para não me chamar mais de Sajhë. As pessoas podem suspeitar. Labirinto foi um best-seller mundial.

Pas a pas se va luènh — Marie-Cécile disse, meio debochada. — Continue autografando, Audric. Senão mais gente é capaz de desconfiar. Tenho quase certeza que quem contou a nossa história a Kate Mosse foi aquela inglesinha, a Alice Tanner. Um dia eu ainda vou acertar as contas com ela.

Nota de Flavia Andrade: Nossa colega "W@L" se inspirou nos capítulos finais de
LABIRINTO, de Kate Mosse, para descrever este encontro com Audric Baillard (Sajhë) e Marie-Cécile de l´Oradore, inimigos na ficção.